Eu escrevo; eu lembro teu nome e escrevo; as gotas de suor
me caem pelos olhos que mantenho abertos, enquanto o meu hálito embaça o vidro
do espelho, e eu? Eu escrevo. Não sei se para me desculpar comigo ou contigo
por tudo aquilo que fizemos ou deixamos de fazer; não sei se para chamar a tua
atenção para o nome do meu gato de estimação que só me tem trazido desgostos
(Deus, deve haver alguma razão para isto tudo…), eu não sei, eu realmente não
tenho entendido se escrevo para evocar o teu ou o meu fantasma, ou se o tenho
feito apenas para reviver uma velha dor com ares novos, eu não sei.
Queres
saber do que sei? Bem, sei pouco; no mais, sei de mim. Não que isto me tenha
impedido de saber do teu novo endereço; não que isto tenha me cegado para as mudanças
da nação ou insensibilizado para o raro cheiro de chuva no ar das noites do mês
passado. Eu sei que o dólar anda em alta e que a União européia não passa de um
blefe continental com um prazo de validade definido pela inveja da vizinhança;
mas olha, eu ainda falo demais mesmo, e pior! Tenho o mau hábito de realmente acreditar
nas coisas que digo, provavelmente por acreditar -com uma comovente inocência-
no fato de que ainda sei o que é a verdade e como me valer dela.
Mas é isso mesmo, não tem realmente nada a ver
com o que aconteceu, mas sim com as coisas como eu me lembro. Não importam os
cheiros, os gostos as sombras dos becos, as luzes da cidade… porque, em algum
ponto, a infidelidade da memória trairá a todos nós e no mais é isso: uma
maldita série de imagens mal desenhadas que me dizem que algum dia houve algo
bom e que este algo bom está intimamente ligado ao suor dos corpos e toques íntimos,
partindo da língua até o dedão do pé. Era tudo nosso, era tudo exuberantemente
ardente e, agora, sequer consigo lembrar o teu rosto.
Pois
sim, eu ainda escrevo, e hoje, quando olhei o espelho tentando abolir todas as
hipocrisias remanescentes de minha vida, percebi -além da ascensão de minha
calva- que continuo sendo um hipócrita e amanhã não devo amanhecer muito
melhor; notei que ainda escuto as mesmas musicas, uso as mesmas roupas
amassadas e gastas -sempre o mesmo preto amarronzado- e, quanto a isso, é
engraçado lembrar de ter me aventurado em outros tons. Eu continuo desleixado e
preguiçoso, alimentando o mesmo gato gordo de defeitos idênticos, que não deixa
de me fazer pensar que ele sim ainda conserva alguma classe. E por fim, o pior
foi entender que, apesar de não querer lembrar coisa alguma, escrevo para não
me permitir esquecer.